*Tradução livre de trecho do livro-seminário Un Esfuerzo de Poesía, de Jacques-Alain Miller.
“Os poetas foram os primeiros em recolher o que o sociólogo, especialmente Max Weber, chamou de ‘desencanto do mundo’. Foram os poetas que se deram conta de que nascia um mundo novo regido pela utilidade, ‘a utilidade direta’ como dizia Edgar Poe, e que esse mundo de utilidade direta expulsava, ameaçava a poesia. É precisamente neste momento que nasce Freud.
Não será excessivo dizer que a psicanálise valeu-se da poesia e que efetuou à sua maneira um reencanto do mundo. Reencantar o mundo, não é o que se faz em cada sessão de psicanálise?
Em uma sessão de psicanálise, nos abstraímos de qualquer avaliação de utilidade direta. A verdade é que não se sabe para quê serve uma sessão. Contamos nossa vida, damos um lugar ao que se poderia chamar de nossa autobiografia, salvo que não a escrevemos: contamos, narramos. É a autobionarração, se ouso dizer, com o que isto comporta de autoficção – na atualidade pretendem fazer disto um gênero literário, que se deve em parte à prática da psicanálise.
No fundo, cada sessão de análise, com o que ela comporta de contingência, ou seja, de acaso, afirma que o que vivo merece ser dito.
Neste aspecto, uma sessão analítica não é pouco; nela deixamos o curso normal da existência para formular o que podemos quando estamos asfixiados, liberando uma hora para poder falar antes que o ritmo normal da existência volte a nos apanhar. Uma sessão analítica serve para desmentir o princípio de utilidade direta.
É a fé numa utilidade indireta, uma utilidade misteriosa, uma causalidade que valeria a pena detalhar, uma causalidade da qual se ignora por que canais passa, mas que definitivamente se impõe. Existe isso em cada sessão de análise: uma fé depositada na utilidade indireta.
É neste sentido que uma sessão de análise é sempre um esforço de poesia, um espaço de poesia que o sujeito reserva na existência, a sua, que é determinada, governada, pela utilidade direta – que é hoje em dia a situação de cada um.
A sessão de análise é um lugar aonde posso descuidar da busca daquilo que é comum. Este não é o caso de um Curso, por exemplo, ao contrário, aonde tenho que encontrar as palavras para me dirigir a vocês [aqui Miller refere-se ao público que assiste a seu seminário]. Na vida social estamos subordinados ao que é comum. Numa sessão de análise, podemos nos abstrair disso, não nos ocupamos do que é comum, não nos ocupamos do que é comum a todos, nem a vários, nem a alguns: podemos nos concentrar sobre o que nos é próprio.
Podemos nos concentrar no que nos é próprio, e chegamos a dizê-lo a alguém, a dizê-lo mediante uma língua, isto já é se dividir. É dito a outro, mas apenas a um. Em uma sessão de análise, não se fala para ‘o’ analista, fala-se para ‘meu’ analista, fala-se para ele, para alguém que é tirado da multidão. Tem-se com ele esse laço que é a língua, uma língua que é de todos, mas o destinatário é único.
Evidentemente, se não for esse, é outro. Quando o analista morre – isso acontece -, se escolhe outro. O analista não é insubstituível. Mas é, no entanto, um, aquele que está ali para consentir, posto que é isso o que o analista faz fundamentalmente: acolhe, diz sim, acusa o recebimento em nome da humanidade, acusa recebimento em nome dos que falam.
O analista não está lá para me acusar, não está lá para me julgar, está lá para acusar recebimento. E pelo simples feito de que acusa recebimento, me desculpa. E de fato, são os culpados os que entram em análise. Por isso mesmo, pode-se dizer que são os inocentes que se julgam culpados, mas definitivamente são aqueles que estão sob o jugo de uma lei bastante abstrata e ilegível a ponto de que se ajustar a ela não isente ninguém. Esta é a aberração própria dos tempos modernos, que se caracterizam por terem dado origem a uma lei tal que jamais poderemos nos ajustar a ela, portanto precisamos da mediação de alguém em quem confiamos, a quem confiamos nossas angústias, para poder ‘ir em paz’, até a próxima sessão.
Como não se dar conta de que uma sessão de análise é como um parêntese – nem mais nem menos -, um parêntese na existência cronometrada do sujeito contemporâneo, esse sujeito que está condenado à utilidade direta?“.